segunda-feira, 22 de julho de 2013

Todos os dias, ao acordar, não despertes apenas do sono...



Quando nasceu baptizaram-na de Maria das Angústias. Nunca saberemos se foi premonitório ou condenatório, certo é que a única constante na sua vida foram as angústias. Conheci-a há muitos anos, ainda eu era adolescente e ela uma jovem mulher que mantinha uma relação amorosa proibida com um homem casado. Rompera com a família por ele. Vivia de um amor de migalhas, de restos, sobras que, aparentemente, chegavam para lhe alimentar a felicidade. Vieram os filhos, dois. Vieram os problemas financeiros e com ele o carácter do homem. As visitas não eram mais para saciar a fome dela, do corpo dela, do amor dela. As carícias deixavam agora marcas escuras no corpo, mazelas difíceis de esconder, dores na carne e na alma. Ele não era mais o empresário endinheirado. Era ela quem, agora sustentava os filhos e os vícios dele. Foram anos, numa existência conturbada, violenta, acidentada. Recusava-se a abandoná-lo, estava condenada a ele. Era um suicídio lento, como uma colher de veneno que todos os dias tomava e dava a tomar aos filhos, um veneno que, um dia, faria efeito... 
À sua volta, quem dela gostava, revoltava-se, insurgia-se, exigia que alguém fizesse alguma coisa. Nada se podia fazer, além de ajudar a sarar as feridas visíveis. Apenas ela tinha a chave da sua prisão. Um dia, sem ninguém o prever decidiu mudar de vida. Pegou nos filhos, partiu, abandonando o seu carcereiro na ignorância. Diz que viu a luz, virou médium/espirita. 

Sei que ela sempre reconheceu nos meu olhos a pena. Pena por a saber fraca, pena por a saber prisioneira, pena por saber que ela não gostava de si. Sei que sabe que sempre gostei dela e torci para que saísse da sua própria sombra. Quando a encontrei, tempos mais tarde, vi uma mulher diferente. Contou-me que estava bem. Tinha um emprego estável e, nas horas vagas ajudava pessoas com o seu dom. No meu olhar havia agora  surpresa e alegria por a saber feliz. 
Ela olha sempre para mim com carinho, com um brilho de quem sabe algo mas não me conta. Diz-me sempre que pede muito por mim e que tudo há-de dar certo, abraça-me e sussurra: "coragem". Dá-me mezinhas para fazer, sabe que não acredito, que não as farei, mas não a impede de continuar a preocupar-se comigo. Há muito tempo que não estou com ela, hoje enviou-me um recado: "Sei que não tens andado bem. Preciso de estar contigo. Tenho uma receita para ti". É verdade não tenho andado no meu melhor. É verdade que não tenciono seguir a receita dela, que deverá uma daquelas simpatias/oferendas que se vêem no calçadão do Rio e que apenas servem para matar a fome aos pobres que por elas passam. Mas também é verdade que me faz bem estar com ela, inexplicavelmente, aqueles olhos, marcados pelas angústias espelham agora uma esperança que nos renova.


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